sábado, janeiro 31

Cantico Negro

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Ha, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços
E nunca vou por ali...

A minha gloria e' esta:
Criar desumanidade!
Nao acompanhar ninguem
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre da minha Mae

Nao, nao vou por ai! So vou por onde
Me levam meus proprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vos responde,
Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pes sangrentos,
A ir por ai...

Se vim ao mundo, foi
So para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus proprios pes na areia inexplorada!
O mais que faça nao vale nada.

Como, pois, sereis vos
Que dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstaculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avos,
E vos amais o que e' facil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes regras, e tratados, e filosofos, e sabios.
EU tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e canticos nos labios...

Deus e o Diabo e' que me guiam, mais ninguem.
Todos tiveram pai, todos tiveram mae;
Mas eu que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que ha entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguem me depiedosas intençoes!
Ninguem me peça definiçoes!
Ninguem me diga: "vem por aqui"!
A minha vida e' um vendaval que se soltou.
E' uma onda que se alevantou.
E' um atomo a mais que se animou...
Nao sei por onde vou
Nao sei para onde vou,
- Sei que nao vou por ai!?


by Jose Regio
in "Poemas de Deus e do Diabo" (1925)

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