segunda-feira, julho 5

Morte e Vida

"Nao sei ao certo o que sonhei, sei que nao era positivo. Nao voltarei a adormecer rapidamente. Levanto-me da cama e olho pela janela meia aberta. O dia já começou a nascer, o céu deixou o negro da noite e começa a assumir o seu azul escuro do amanhecer.
Visto-me 'a pressa como se duma urgencia se tratasse e corro através de dunas de areia em direcçao ao mar através duma praia solitária. Toda a praia se demostra ainda nocturna, ainda nao é de dia nao sendo já noite. Mas há algo de errado, nao pode ser descrito, mas sentido, como quando sentimos uma preocupaçao ou uma desilusao. Residia em mim e em todo redor, atravessando todos os quilómetros de costa visíveis.
Procuro tudo o que está errado sem encontrar, chego perto duma lagoa que desagua no mar. Sei, sem qualquer prova, ter encontrado o seio de todo o mal. Um local onde a vida é desprezada, onde peixes sem vida sao abandonados perto da água e gaivotas residem mortas em putrefacçao. Sou um profundo desespero proveniente da incapacidade de emendar o mal, caio de joelhos olhando o céu e interrogando-me como alguém pode permitir que semelhante crueldade aconteça.
Mas ninguém responde, nao encontro uma resposta senao a maldade interior presente em todos e escondida por princípios falsos, aprendidos e dissimulados. O novo dia nao irá nascer senao doentio, com um céu possuído por um manto melancólico de nuvens.
Levanto-me tentando nao viver toda esta morbidade, mas antes que o possa fazer um som estranho do lado do mar me chama... um cao! Um pequeno e mal tratado animal, abandonado e desprezado por humanos, sujo e com feridas abertas por baixo do queixo e no lombo e uma maior e menos cicatrizada no peito. Tento aproximar-me do pobre animal mas ele apenas me foge com medo e a mancar, ganindo. Veneno nas veias, provoca ardor no coraç?o, que sinto esmagado por alguma força suprema.
Arrasto-me para o cimo duma duna onde volto as costas ? vegetaçao tao resistente e fria que deixa de se tornar viva para o mundo. A chuva fria já é o meu corpo e para além do frio apenas sinto a sua humidade e peso que deixou nas escassas roupas, nada mais.
Um homem vem atravessa a praia, junto ao mar, desde o ponto em que se tornou visível por entre a neblina, trazendo consigo um saco pesado ao ombro, um homem indiferente ao mundo. Aproxima-se durante uma eternidade. Mal atravessa a linha de água que leva a lagoa ao mar, olhando-a com desprezo, revejo o pobre cao.
O homem nao me ve, o cao ignora-me. Vejo o cao perto do homem e este a olhá-lo de soslaio, parou. Olhou-o de novo, tira o saco do ombro... na minha mente forma-se a imagem do animal escorraçado por todos os humanos e prevejo que ira repetir-se. As lagrimas correm juntamente com a chuva. Mas nao... o homem nao o atacou... apenas tirou algo que aparenta ser comida, oferecendo-a ao cao. O cao aproxima-se e o homem senta-se na areia junto a ele, dando-lhe comida.
Mas a comida acabou e o homem ergueu-se, via-se, mesmo ao longe, o agradecimento e alegria no olhar do animal saciado. Vejo-o ser pegado ao colo e levado dentro da camisola que o próprio homem despiu para aconchegar aquele seu novo companheiro e amigo.
Nao tento disfarçar o sorriso que ninguém verá. O sol consegue olhar por entre as nuvens em feixes finos sobre o mar. Volto a casa vivo de novo, olho pela janela que sou agora incapaz de fechar. O ar mais quente aquece-me o corpo mal dispo a roupa molhada e ao respirar fundo sinto de novo o cheiro da maresia. Sorrio e deito-me na cama sem esticar lençóis e sem vestir pijama.
Fico acordado durante horas, até adormecer, a reviver o que se passou. Que nao será algo de muito estranho, raro ou inacreditável, mas foi uma vida nascida da morte, a morte que fez a vida num momento de apenas morte. A inversao dum Universo perverso num amanhecer como tantos outros..."

by Fernando Vargas

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