sexta-feira, setembro 9

Poeta obscuro

"Acerca da frase - «Meu Deus, faz com que eu seja sempre um poeta obscuro.» - julgo haver alguma coisa a explicar. (...) Tracei-a a lapis na parede em frente da cama. Estava sempre a ve-la. Isto 'a noite, quando de subito abria a luz e dizia para mim mesmo: - Nao estou cego. - Ou quando, acordando bastante tarde, verificava com surpresa que nao tinha morrido durante o sono. Sofro destes tormentos da imaginaçao ou da sensibilidade desordenada. Neurose. (...) Tenho algumas prateleiras com livros, meia duzia de quadros e desenhos, uma dezena de discos. O quarto pode ficar subitamente cheio. (...) começo com um poema asteca dito em voz alta dentro do quarto, com um fundo musical. Escolho: um trecho suave e ambiguo, de um ardor grave, ironico. Olho ao mesmo tempo para a reproduçao de um desenho japones: um delicado peixe fugitivo, uma onda enrolada. E a frase irredutivel e orgulhosa :«Meu Deus, faz com que eu seja sempre um poeta obscuro». (...) Sei rodear-me de coisas poderosas pelo valor da emoçao, de referencia a qualidades intimas e decisivas, e pelo desafio ao proprio sentimento de arrebatada fragilidade humana. (...) Ora eu estou nu, e ainda penso vagamente na divindade asteca, e a delicadeza dramatica do peixe a esgueira-se na musica. Nao é de modo algum unidade, a inteireza, mas quando considero esta luta pela constancia, a fidelidade, a permanencia de certas inspiraçoes e regras - vejo que se procura atravessar todos os fogos, mantendo intactas algumas virtudes: porventura um silencio capaz de dar poder e dignidade 'a nossa morte. É pouco, bem sei, talvez devessemos fazer grandes coisas, duas ou tres coisas verdadeiramente grandes, com que recomeçar o mundo. Mas quando Deus está defronte, na parede, e nos concede a obscuridade para utilizarmos contra a sua magnificiencia, como uma arma insolita e enigmatica, clandestina - quem pode ainda recomeçar seja o que for? O poema que se escreve - longo texto fuindo, denso e venenoso, a imitar a substancia ao mesmo tempo vivificante e corruptora do sangue - nao é sequer uma oferenda dirigida a Deus. É a ironia, onde desliza a arma da nossa obscuridade. Tremenda força essa. Escrevo o poema - linha apos linha, ao redor do pesadelo do desejo, um movimento da treva, e o brilho sombrio da minha vida parece ganhar uma unidade onde tudo se confirma: o tempo e as coisas. De modo que é um extraordinario triunfo tomar o papel entre duas maos sabias e rasga-lo aos bocadinhos, sorrindo. (...) Obscuros como sempre, esmo sem pedi-lo. Grande vitoria que ninguem nos podera arrebatar."

Aqui está um texto que gostaria de conseguir escrever. Algo que transmite como me sinto tantas vezes e tanta senti, todo o texto é aquilo que sei apenas por mim, ditado por palavras que nao sao minhas, organizadas num belo texto. Realcei o que penso ser os pontos principais do meu sentimento ao texto, para organizar um pouco um post tao longo.
Mais um texto de Herberto Helder, proveninente do livro «Passos em Volta». Um livro que começa e acaba com uma viagem que se percorre durante este, vivida em dias aleatorios na mente de um poeta e entre as suas filosofias.

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